Fotografia: Jorge Delfim |
Desde o momento em que o então primeiro-ministro António
Guterres anunciou a suspensão das obras da Barragem do Vale Côa, iniciou-se uma
viagem no tempo longo, até ao passado, no Neolítico, e pelo tempo que foi
decorrendo sobre aquela decisão até aos dias de hoje.
Quem passe pelas curvas fechadas da estreita estrada que
desce de Vila Nova de Foz Côa até ao Pocinho, vai-se apercebendo da grandiosa
majestade da paisagem, constituída pela profundas escarpas que escondem o leito
do rio, só o deixando ver aqui e ali, como se de uma joia brilhante se tratasse
e fosse necessário preservá-la dos ambiciosos olhares humanos, com receio de
apropriação indevida ou desaparecimento.
Sem dúvida que ali se encontra um tesouro incalculável que
foi guardado pela cápsula do tempo cronológico, para chegar até nós como
verdadeiro projeto civilizacional que os nossos maiores, de remoto tempo
histórico, nos quiseram legar.
Não é fácil a qualquer civilização guardar as suas memórias
culturais, estéticas e artísticas para serem vistas, interpretadas e utilizadas
num futuro distante, como também não seria garantido que uma qualquer mensagem
que hoje fosse enviada para o futuro, a uma distância de 35 a 40 mil anos,
pudesse encontrar os seus destinatários e, assim, cumprir a sua missão de modo
a estabelecer a ponte científica e cultural que liga os dois tempos
cronológicos da humanidade, provocando um encontro intelectual de dimensões
inimagináveis.
Ali, no Vale do Côa, podemos, de um modo indelével, realizar
essa viagem assombrosa e quase percecionar os emissores da mensagem que somos
capazes de olhar sem, contudo, conseguirmos decifrar cabalmente o seu
verdadeiro significado.
Fotografia: Adriano Ferreira |
Fotografia: Jorge Delfim |
Não sei se os nossos antepassados do Vale do Côa foram
capazes de prever que, quando a sua mensagem fosse encontrada, a uma distância
de dezenas de milhares de anos, ela iria imprimir um movimento inusitado de
pessoas para investigar, proteger, valorizar e divulgar, não só o suporte da
mensagem mas a própria mensagem. Porém, mesmo que as previsões não tenham sido
essas, a verdade é que mais uma vez estão presentes, de modo muito dinâmico,
fazendo com que a comunidade local beneficie diretamente com o seu trabalho,
quer pela participação direta na economia local, quer pela capacidade de gerar
fixação de pessoas que assim engrossam a comunidade e contribuem para uma
mais-valia territorial que, de outro modo, seria difícil alcançar.
Quem sabe se por aquelas terras ainda vivem, trabalham e
criam futuro alguns descendentes dos criadores das gravuras rupestres? Exista ou
não essa ligação ao passado através da descendência, existe no Vale do Côa um
património de grande relevância para a valorização da região e para o seu
desenvolvimento.
Igualmente importante é a adoção desse património pela
comunidade local, o que tem gerado profícuas associações com o Parque
Arqueológico do Vale do Côa (PAVC), contribuindo para uma dinâmica mais
efetiva, quer das atividades económicas, quer das ações educativas e culturais.
Podemos afirmar que, passado o ambiente de desconfiança e de
rejeição dos primeiros anos por parte das comunidades locais em relação ao
PAVC, este desenvolveu o seu trabalho numa perspetiva de preservação, gestão
integrada e divulgação, conseguindo fazer passar para as populações o
sentimento de pertença e de identificação com valores intangíveis do património
coletivo, que haveria de vir a afirmar-se um motor de desenvolvimento
sustentável capaz de apoiar as capacidades endógenas de uma região
tradicionalmente deprimida e abandonada pelos poderes públicos.
Exemplo de esforço, trabalho continuado, resistência às
pressões e às contrariedades, o PAVC afirma-se, hoje, como uma estrutura de
base local com dimensão nacional e internacional, contribuído qualitativamente
para uma melhor relação dos portugueses com o seu património e para potenciar
os fluxos de turismo científico e cultural, que se dirigem para Portugal,
motivados por publicações e imagens de um vale mágico, aqui de longos
horizontes, acolá de inesperados declives, a que se soube acrescentar o encanto
e a arte feita para trazer até nós a mensagem do passado humano que, mais ou
menos inteligível, fez de nós os seus fiéis depositários, talvez com o
propósito de fazermos dela um elo de ligação a outros povos e de a colocarmos
aos serviço das funções económicas, educativas, culturais e sociais relevantes
que a História e a Arqueologia têm procurado fazê-la desempenhar.
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