Crónica de um passeio
pela linha
(a propósito do III Passeio
Pedonal – Almendra/Barca d’Alva)
Por terras de Foz Côa, já há muitos anos que a água
não caía tão intensa. Dias e dias a fio, as nuvens pesadas e negras
descarregavam quase ininterruptamente torrentes de chuva. Mesmo assim, uma
espreitadela aos sites meteorológicos
confirmava que naquele dia 30 de Março, o tempo amainaria, e o sol, embora
tímido, faria a sua aparição.
- Sábado não chove! - profetizava o Zé Constanço,
enquanto a chuva caía copiosamente sobre a procissão do senhor dos Passos.
- Chova ou não chova, já comprei a água e a fruta,
para dar ao pessoal na ponte de são Cibrão - respondi-lhe com convicção, não
fosse o Zé desanimar. O que é preciso é ter cuidado com a travessia da ponte;
já lhe roubaram várias pranchas do corredor e é preciso fazer um cordão de
segurança.
- Conta comigo, pá! Andei nos comandos a fazer o
quê?
...
Sete e trinta da manhã. Os autocarros da câmara
ocupavam já os lugares estratégicos para arrancar. Pelo trajecto até à estação
haveriam ainda de recolher caminheiros em Castelo Melhor e no cruzamento de
Almendra. E enquanto o Luís confirmava o pessoal inscrito e o Lebreiro
desfazia-se em cumprimentos, no Havaneza tomavam-se os primeiros cafés da manhã
e trocavam-se conversas e abraços.
- Eu vou com o Adriano à frente e esperamos por vós
na ponte - dizia o Zé, de NIKON a tiracolo. O Adriano leva uma merenda que já
me está a fazer água na boca!
- Não me digas que é lampreia, labuzeirão? E o garrafão?
- Ó tosco,
então isso é que faltava?!
...
Dez e trinta. Ponte de São Cibrão.
- Caminhem pela direita e aproveitem o corredor e o
corrimão - recomendei preocupado. Mais à frente faltam já algumas pranchas, mas o Diamantino, o Cazé e
Zé Constanço estão lá para ajudar! Na carrinha há maçãs e laranjas para todos. E água também. Temos muito tempo, só faltam quatro quilómetros para Barca d’Alva!
...
A atenção
exigida durante o percurso para evitar os pequenos obstáculos e acertar os pés
nas travessas da via-férrea não permitia gozar em pleno a paisagem espectacular
do rio Douro, mas agora ali, mesmo junto à ponte, enquanto se matava a sede e
se saboreavam umas excelentes laranjas, os olhos podiam correr lentamente pela
paisagem.
O Douro, bastante encorpado e lamacento das águas das chuvas,
espreguiçava-se entre a quinta da Canameira e a quinta do Sotero. Sobreposto ao
rio, o monte de Caliábria dominava a paisagem circundante, como que a reviver
os seus tempos imemoriais de antiga cidade muralhada e sede de arcebispado,
abandonada há séculos e perdida nas brumas do tempo. As vinhas e os olivais
corriam planuras e encostas e só se detinham bem próximo das margens do rio. A
completar o quadro, as urzes, as estevas e os rosmaninhos enchiam os ares do
perfume mais puro e mais precioso que existe. Hei-de trazer aqui a minha
família, dizia-me um simpático caminheiro. É sem dúvida uma paisagem
espectacular! Sou da Amora e ao passar aqui de barco, prometi a mim mesmo que
um dia faria a linha a pé! Ainda bem que vocês fazem estas actividades,
dizia-me o amigo Fonseca!
A caminhada
reinicia-se.
Os caminheiros avançavam, agora num extenso troço da linha sem
carris, cujo desaparecimento trouxe com certeza uns bons cobres à bichagem que os fanou! De repente encontro-me
completamente só! Nem carrinhas, nem gente! Que terá acontecido? Um cheirinho
delicioso a guisado pairava no ar puro da paisagem! De maçarico na mão, o
Adriano esquentava o tacho do galo preparado na véspera! Manjar delicioso! Galo
pica-no-chão, pão caseiro, queijo de ovelha, azeitonas de arregalar os olhos e aquela pinga tinta do Zé, inteiramente de sua
lavra, era de clamar aos deuses, os tais que nos haviam poupado de uma molhaça
do catano!
Doze e trinta.
Barca d’Alva começava a receber os primeiros
caminhantes. A linha que por viadutos atravessa o povo e vai quedar-se na
estação, conduzia os passeantes até ao abandonado cais de embarque. Ali mesmo,
abrigada sob o velho barracão de mercadorias, o Cazé estacionara a carrinha das
merendas, e a caixa de carga virara, como que por magia, numa copiosa mesa de
iguarias de toda a espécie. Livre, comunitária, oferecida! Nada lhe faltava,
nem o espectacular pastelão de espargos que o Reinaldo da concertina foi colhendo ao longo do
percurso e que pressurosamente fritara num restaurante local. Nem os deuses do
Olimpo comeriam tão bem!
Perto de cem
caminheiros haviam participado em mais uma acção em prol da reabertura da linha
internacional do Douro. A tal que, já nos tempos do Eça e do Junqueiro, havia
sido a mais importante via de caminho-de-ferro internacional.
A tal que possui
o percurso mais directo e mais lógico entre o Porto e o resto da Europa, mas
que só as mentes entupidas não querem ver! A tal que ainda hoje representa o expoente
da arquitectura e da engenharia portuguesa dos fins do século XIX! A tal que,
contra vales e abismos, barreiras e penedias, vales e montanhas, havia de se
erguer até San Esteban, à força do trabalho português que em perigos esforçados
levaria ao desaparecimento de duas centenas de corajosos operários que jazem
nos campos de Fregeneda.
Comparada com
eles, a nossa luta não passa de uma vulgar acção, porém sentida! E se apenas
isto fizéssemos, isto bastaria para reconhecer o valor e o trabalho da grandiosa
obra que muitos querem esquecer!
por José Ribeiro
Foz Côa Friends, Associação
3 comentários:
Bem-Hajam a todos por actividades como esta. Foi na primeira edição desta actividade que se cimentou a ideia de realizar o projecto "Terra dos Sonhos" e isso de certa forma alterou a minha vida! Por isso o meu agradecimento a todos.
https://www.facebook.com/TerradosSonhosDocumentario?fref=ts
Os melhores cumprimentos Nuno Leocádio
Foi um dia muito bem passado, com muitas historias para recordar e contar aos netos :)um abraço caloroso de Lisboa
Bem-hajam a todos amigos de Foz Coa!!
aquele nortenho abraço
Jose Dias Pereira
A todos os que participaram na caminhada e nos apoiam por tudo o mundo, é um privilégio ser mais "um" entre tantos.
A vida é feita destas pequenas coisas!
Juntos seremos muitos...
Bem-hajam a todos!
Um grande abraço deste Fozcôense
Paulo Fachada
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