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31 maio 2011

Os caminhos-de-ferro do Douro: história e património

Pelo Douro fora, entre o rio e as serras, a viagem de comboio torna-se inesquecível, mesmo que repetida mil vezes. A paisagem monumental dos vinhedos e olivais ou os alcantis ciclópicos que, aqui e ali, comprimem as margens multiplicam-se na infinidade de olhares e sensações que despertam em cada recanto. Ao longo do dia ou no curso das estações, enchem-se de luz ou de sombras, de uma profusão de tonalidades de verde, em planos sobrepostos de névoa ou na intensa claridade mediterrânica. Uma paisagem assim envolve-nos os sentidos e a imaginação. Certamente, a região tem vindo a ganhar uma rede de estradas que a atravessam em várias direcções, mas só o comboio nos dá a liberdade total para essa viagem de comunhão com a terra. Correndo entre as fragas da encosta e o rio, o caminho-de-ferro desvenda a épica do lugar. Não é apenas o que os olhos vêm que nos surpreende. É a nossa própria meditação, embalada no rumor dos carris, que mistura sensações e memórias, busca a compreensão do que não se vê mas se imagina em cada trecho da paisagem.
Não é difícil perceber a dimensão titânica do trabalho humano que transformou as montanhas de xisto em patamares de vinhedos. Ou o que foi rasgar a penedia para construir o caminho por onde seguimos, na linha do Douro, aqui e ali suspenso sobre pontes de ferro, a desafiar desfiladeiros. Sem o caminho-de-ferro, o Douro não seria o que é hoje. Vale a pena recordar que, nas suas origens, há uns 150 anos, quando as elites políticas e financeiras da época começaram a pensar na sua construção, a linha-férrea do Douro era apresentada como a grande alavanca para o progresso desta região pobre, mas produtora de grandes riquezas. Afinal, tratava-se do «país vinhateiro», onde se produzia o celebrado vinho do Porto, o maior valor da exportação nacional. E, por outro lado, os velhos caminhos, que ligavam as povoações da região ou levavam ao Porto e a outras terras, eram intransitáveis ou difíceis de transitar. O transporte do vinho, neste «rio de mau navegar», de caudal e leito muito irregulares, cheio de poços, cachões e secos, fazia-se nos tradicionais rabelos. Todos os anos, eram mais de duas mil viagens, cada uma delas demorando vários dias de navegação perigosa. Por isso, o comboio constituiu, durante décadas, a grande esperança desta terra. Mas, como tantas vezes tem acontecido na concretização de projectos estruturantes do Douro, a construção foi sendo protelada e só aconteceu na segunda metade dos anos setenta, quando o Douro vinhateiro, ainda mal refeito da devastação do oídio, enfrentava a destruição ainda maior da praga da filoxera. Quando o comboio chegou à Régua, em 1879, e, no ano seguinte, ao Pinhão, já havia quem desse a região como completamente perdida. Em Dezembro de 1887, a viagem de comboio poderia fazer-se, finalmente, até Barca de Alva, ligando-se, por aí, a Salamanca e à Europa. Mas a chegada tardia do caminho-de-ferro, numa época em que o Douro mergulhava na extrema pobreza, não trouxe o progresso esperado. Nem podia trazer. Como escreveu, então, Oliveira Martins: «O caminho-de-ferro, lembremo-nos bem disto, é um instrumento de uma energia incomparável, mas é um instrumento apenas. Aplicado a um organismo são e capaz de o suportar, avigora-o; aplicado, porém, a um organismo depauperado, extenua-o». Não é, por isso, de estranhar que as estações se tenham enchido de emigrantes, fugindo da fome, com a esperança de refazer uma vida nova em terras brasileiras.
É difícil imaginar o que seria o Douro sem o caminho-de-ferro, nessa época de desolação, com grande parte das vinhas mortas pela filoxera e as populações na miséria. Mas do que não há dúvida é que ele teve um papel primordial no combate a essa crise maior da história do Douro, quando os durienses tiveram de plantar de novo todo o vinhedo regional e construir milhares de quilómetros de muros de socalcos. Foi o caminho-de-ferro que possibilitou o transporte rápido de videiras americanas, de adubos, de fitossanitários e de trabalhadores. Em dez anos apenas, entre 1893 e 1902, fizeram-se no Douro cerca de 20 mil hectares de plantações, metade da área actual de vinha de toda a região demarcada. E, não menos importante, o comboio permitiu um reordenamento e uma integração do espaço regional, bem como uma ligação mais rápida ao Porto. Antes dele, a região vinhateira pouco ultrapassava o Tua, excluindo, praticamente, todo o Douro Superior. Depois, alargou-se até à fronteira com Espanha. Esse novo mapa regional começa a surgir logo nos anos oitenta do século XIX, bem antes das novas demarcações de 1907 e 1908. Além disso, a linha do Douro tornou-se um instrumento modernizador essencial, diminuindo para algumas horas o que antes, nas velhas diligências, significava dias de distância. E, sobretudo, permitiu o desencravamento da região. Havia quem tomasse o comboio na Régua, no Pinhão ou no Tua, para ir a Bordéus ou a Paris. Nos anos noventa, Eça de Queirós deixou-nos, no seu livro «A Cidade e as Serras», o olhar de espanto do snob Jacinto, vindo de Paris, de comboio, perante a paisagem duriense, ao chegar à estação de Barca de Alva. E, por isso, poder-se-ia dizer que a história da actual região demarcada e a história do caminho-de-ferro do Douro se irmanaram nesse momento épico de refundação do «país vinhateiro».
Tal como a plantação de novas vinhas, também a epopeia da construção da rede ferroviária do Douro exigiu um trabalho ciclópico, obrigando a rasgar caminho entre as fragas das margens do rio. Muitos trabalhadores morreram não só pela dureza do trabalho, em lugares inóspitos, como pela inclemência do clima. Os eucaliptos centenares junto às estações do Douro não estão lá por acaso. Muitos deles foram plantados nessa época, acreditando-se que afugentavam a mosquitada que transmitia as febres palustres. Houve um ano, quando o comboio chegou ao Pocinho, que os trabalhadores debandaram, após a morte de uns quantos atacados por sezões. E a construção de outras linhas secundárias, como as do Corgo, do Tua ou do Sabor, teve esse mesmo carácter épico. No Tua, houve pontos em que a construção da linha obrigou a prodígios de engenharia e a malabarismos mortais. Algumas partes foram construídas em alcantis rochosos, com os trabalhadores suspensos por cordas.
Durante cerca de meio século, entre 1875 e 1925, a rede ferroviária do Douro, com as extensões a Trás-os-Montes, foi sendo construída penosamente. Sem contar com a linha do Tâmega, já a jusante da região, mas assumindo a mesma perspectiva de dotar o interior do país de uma razoável cobertura da rede ferroviária, a maior parte das linhas do Tua (1884-1906), do Corgo (1906-1921) e do Sabor (1911-1938), foi construída por esta altura. Depois, pouco se avançou. Além disso, previa-se, ainda, a articulação da linha do Douro com outras linhas a construir a Sul do Douro, Porém, essas novas linhas que deveriam completar a rede ferroviária do Douro nunca chegaram a concretizar-se. Desde 1911, na linha que estava projectada para ligar a Régua a Lamego e a Vila Franca das Naves, construiu-se a ponte granítica sobre o Douro, rasgou-se até Lamego a via para o assentamento das travessas e carris, que chegaram a estar acumulados no cais da estação da Régua, mas não mais do que isso. Em meados dos anos trinta, na altura em que decorriam estudos para o lançamento de novas linhas, como a que deveria ligar Foz-Tua a Viseu, o salazarismo veio travar todos os investimentos, concluindo-se apenas os últimos troços da linha do Sabor até Duas Igrejas (1938). Seguiu-se uma longa fase de abandono e de tardia e escassa modernização da rede existente. Para Salazar, o país rural deveria permanecer pobre, alegre e conformado com a sua sorte, como o Douro das vindimadeiras sorridentes das fotografias da Casa Alvão.
Ainda nos anos cinquenta e sessenta, quando os Planos de Fomento proclamavam uma nova era de progresso e lançavam no Douro grandes empreendimentos para alargar a energia eléctrica a todo o país, a região continuava esquecida. Produtor de uma boa parte da energia hidroeléctrica nacional, nas sucessivas barragens que se construíram, primeiro no Douro Internacional e depois ao longo do curso português do rio, o Douro continuaria sem a electrificação da sua rede ferroviária até aos nossos dias.
Esperava-se que, após o 25 de Abril de 1974, o regime democrático e os sucessivos planos de desenvolvimento se traduzissem em projectos de efectivo combate às desigualdades territoriais do País. No entanto, relativamente à rede ferroviária do Douro, como sucedeu com muitos outros serviços públicos do interior, verificou-se a ausência de investimentos adequados à modernização das linhas e das composições. Desde os anos oitenta do século XX, a par da euforia do poder central na construção de auto-estradas e de grandes obras públicas concentradas no litoral, sucederia a amputação, sem sentido, da rede ferroviária do Douro. A pretexto da diminuição de utentes e de racionalização da gestão das linhas, procederam ao encerramento de estações e apeadeiros, em muitos casos seguido de destruições gratuitas desse património. Diminuíram as viagens e as composições. Alteraram horários, muitas vezes sem ter em conta as necessidades das populações. Desactivaram linhas, ou troços de linhas, no Douro, no Sabor, no Tua, no Corgo e no Tâmega, desestruturando, sucessivamente, a rede ferroviária regional.




Nesses tempos de triunfo do betão e do neo-liberalismo, os responsáveis pela política ferroviária nacional justificaram as suas decisões em relação às linhas do Douro como medidas de boa gestão de recursos públicos. Diziam que as linhas não eram rentáveis. Mas nunca se questionaram por que é que as linhas não eram rentáveis ou se tinham sido feitos os investimentos necessários para as modernizar e as tornar rentáveis. E muito menos se questionaram, como deviam, na lógica de um serviço público, se a supressão das linhas e troços de linhas não punha em causa os direitos das populações mais desfavorecidas que deveria servir. Nem sequer pensaram nos interesses estratégicos regionais, no seu sistema de relações, tanto intra-regional como inter-regional e internacional.
Foram muitas décadas de uma política de desinvestimento, de desleixo e de má gestão da rede ferroviária regional, com prejuízos evidentes para a economia duriense, para a qualidade de vida e de relação das populações durienses e que resultaram em perdas imensas de património, num maior encravamento da região, destruindo ligações estratégicas do Douro com espaços dinâmicos de Trás-os-Montes, como Chaves e Bragança, e a ligação internacional com a Espanha e com a Europa.
Hoje, porém, alertados para os problemas ambientais resultantes do excesso do uso da rodovia e perante a urgência de novas políticas energéticas, o transporte ferroviário ressurge como solução mais «verde» e amiga do ambiente. Muitos países já perceberam isso e têm apostado na manutenção e renovação da sua rede ferroviária. No caso do Douro, as características da região aconselham essa aposta, tanto mais que o crescimento do turismo suscita, em boa parte do ano, uma nova procura. Além disso, nesta região classificada como Património da Humanidade, pela excelência da sua «paisagem cultural, evolutiva e viva», o património ferroviário da região, ao mesmo tempo que conserva o seu valor de memória e de afirmação da identidade do território, faz parte desse conjunto insubstituível de elementos de atractividade e de recursos para o desenvolvimento de que o Douro não pode abdicar.






Gaspar Martins Pereira
(Professor catedrático da FLUP-Faculdade de Letras da Universidade do Porto/
Coordenador do CITCEM-Centro de Investigação «Cultura, Espaço e Memória»)

1 comentários:

Este texto está excelente!

Gosto especialmente deste trecho:
"...só o comboio nos dá a liberdade total para essa viagem de comunhão com a terra. Correndo entre as fragas da encosta e o rio, o caminho-de-ferro desvenda a épica do lugar. Não é apenas o que os olhos vêm que nos surpreende. É a nossa própria meditação, embalada no rumor dos carris, que mistura sensações e memórias, busca a compreensão do que não se vê mas se imagina em cada trecho da paisagem. "

Parabéns!

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